Corpo como referência: pensando o corpo no mundo e o mundo a partir do corpo
Resumo
Reza uma antiga narrativa do povo Matses que houve uma época em que eles não sabiam plantar e, por consequência, alimentavam-se mal, comendo uma mistura de argila e casca de árvore. Nesse cenário surge o Uesnid – ave conhecida na região como mutum - que vem parcialmente metamorfoseado em humano e ensina os Matses a plantar e comer os alimentos que hoje conhecem. O mito termina com a partida do Uesnid indignado ao saber que as mulheres caçoavam de sua aparência meio-humana, meio-ave, e é a partir deste episódio que se começa a pensar a relevância do corpo humano como a referência primeira de ordenamento das coisas, neste caso, um fator de aceitação social, pois o mutum falava e agia como humano, mas lhe faltava um corpo totalmente humano. Daí em diante, consoante à noção de humanidade em Tim Ingold, o perspectivismo de Viveiros de Castro e a conversão em Aparecida Vilaça, e explorando a tese de Beatriz A. Matos acerca da construção sociocultural do corpo Matses, analisa-se a importância conferida ao corpo humano como diferencial entre os demais seres da sua cosmologia. Em seguida, destaca-se a noção de corpo humano como um modelo estrutural para se pensar o mundo ao seu redor, sendo esta proposição sustentada pelo uso de termos e prefixos corporais para posicionar e descrever o rio, os animais, as árvores e novos objetos como carro e avião, e pela disposição da maloca tradicional -pensada e construída à semelhança de um corpo. Isso implica a visão de que corpos habitam em outros corpos à semelhança de círculos concêntricos, apontando as relações imbricadas nesta realidade múltipla segundo a leitura de Annemarie Mol.