Deuses ou ciborgues? Uma análise multiespécies do conceito de assentamento no candomblé
Resumo
O candomblé foi frequentemente definido, tanto pelos afro-religiosos quanto pelos antropólogos, como sendo uma religião de culto à natureza. O conceito de natureza porém nem sempre apresenta uma definição unívoca. Pelo contrário, é um dos termos mais controversos do debate contemporâneo. Combinando dados etnográficos e teóricos, a autora pretende refletir sobre o papel do dispositivo, ao mesmo tempo tecnológico e espiritual, que caracteriza a religiosidade de matriz africana: o assentamento. Requisito do culto e dos rituais iniciáticos, o assentamento geralmente é descrito como receptáculo simbólico, mas também como corpo e boca físicos da própria divindade (orixá, nquice, vodum, ancestral, entidade, etc.). As regras da confecção desse fe(i)tiche (LATOUR, 2002) nos ajudam a entender melhor uma possível teoria da natureza, onde um conjunto de objetos materiais serviria de instrumento de comunicação com o mundo invisível.Este objeto misterioso e secreto, vivo e fabricado, é alvo de controvérsias, negociações e relações de poder dentro e fora das comunidades de terreiro. O assentamento se configura também como encruzilhada entre tudo aquilo que é humano e não-humano, visível e invisível, natural e tecnológico, animado e inanimado. Subvertendo as grandes divisões dicotômicas do pensamento ocidental, o assentamento nos obriga a retomar a metáfora do ciborgue (HARAWAY 2000) como tecnologia essencial na construção cultural e social dos seres humanos e “sobrenaturais”.