Loucura, transformação, predação e diferença nas terras baixas da América do Sul

Autores

  • Pedro Roberto Meinberg Garcia Filho

Resumo

A loucura só existe em uma sociedade, diria Foucault, não existindo fora das formas de sensibilidade que a isolam, repulsam ou a capturam. Por esse caminho, este trabalho busca investigar a possibilidade de existir ou não um conceito análogo à loucura entre as sociedades indígenas do continente sul-americano. Poderia assim surgir enquanto uma pergunta de pesquisa: como os ameríndios nomeiam e significam, controlam e buscam regular eventos considerados em seus próprios termos atípicos e incomuns para corpos e ações de seus indivíduos? A análise de diversas etnografias realizadas nas TBAS tem me mostrado até então que o que pode ser entendido como loucura no continente passaria por três conjuntos de problemas conhecidos na etnologia regional. No primeiro deles, loucura seria um problema de transformação: uma troca de perspectiva não controlada com outro ente do cosmos pode gerar estados de loucura, do ponto de vista humano. Um mau encontro na floresta (Jarawara), desagradar espíritos-donos em algum lugar (Baniwa) ou quebrar um ritual de iniciação (Matses) pode resultar na troca de perspectivas descontroladas, provocando diversas formas de crises e mal estar. Para surpresa ou não, existem línguas nas quais sua terminologia análoga à loucura tem o mesmo sentido de “transformar”, “virar”. No segundo conjunto de questões levantadas, o problema da loucura passaria pelo tema da predação: durante as caçadas, há casos de inversão da relação, e quem era predador (no caso, um humano) passa a ser presa (de algum espírito-animal). Assim, num infortúnio, o então caçador pode ser caçado e passa a ser sujeito da relação perspectiva e consequentemente sofrer com as crises ocasionadas. Há casos também de se ingerir carne proibida ou de maneira inadequada, atitude que provoca alucinações (Pirahã); ou então se pode ser acometido por estados de loucura após ser vítima de feitiços (Aweti). Se um xamã não intervir a tempo, as crises ou alterações de estado podem resultar em morte. Por fim, esses dois pontos levam a um terceiro, colocando o problema da diferença: refiro-me aqui aos efeitos sociológicos das crises, uma vez que em vários contextos esses eventos evidenciam produção de diferenciações internas ao grupo. A alteridade não está apenas para fora do socius, no Outro, mas também é reproduzida internamente, e não é incomum casos de endoviolência. As etnografias analisadas mostram que o que aparece como loucura na América indígena é também máquina de guerra contra totalizações.

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Publicado

2022-04-28

Edição

Seção

ST15 Etnografias e Saberes Psi: naturezas, culturas, modos de subjetivação