Redes de circulação entre manivas e mulheres nos rios da bacia do Rio Negro
Resumo
Na bacia do Rio Negro, paisagem etnográfica de povos indígenas multiétnicos, existe um sistema agrícola de rica agrobiodiversidade, do qual foram identificadas mais de 300 espécies cultivadas e mais de centena de variedades da maniot esculenta, a mandioca brava, principal expoente do cultivo local. O sistema pressupõe uma rede de trocas de manivas – nome dado à parte aérea da planta que possibilita a sua reprodução por clonagem –, efetivada principalmente por mulheres. Tal como já argumentado por Chernela (1986), “as alianças matrimoniais criam canais que possibilitam a troca de cultivares de mandioca na bacia do Uaupés”. Onde prevalece a regra de virilocalidade, as manivas são doadas pela mãe e viajam, assim, pelo território com as mulheres. Em outros casos, as mulheres iniciam suas roças com as manivas recebidas de sua sogra, e depois incrementam com as manivas de sua mãe, de parentes consanguíneos ou de afins. As visitas a outras comunidades incluem passeios nas roças de outrem e constituem momentos oportunos de receber exemplares de manivas ainda desconhecidas. O interesse em aumentar a própria coleção é guiado pelo valor de ‘beleza’ de uma roça, posto que uma roça bonita é sempre capinada e com grande variedade de manivas. Cada mulher é a “dona da roça” responsável por cuidar e alimentar suas manivas, estabelecendo uma relação de consanguinidade com essas plantas. Neste trabalho, atualizo a discussão levantada por Chernela e desenvolvida por Emperaire (2010, 2019) com dados de agrobiodiversidade produzidos durante minha pesquisa de doutorado, expostos em duas redes moduladas a partir do programa computacional Pajek. Na primeira, as 150 variedades de manivas identificadas estão em relação com os quatro locais da pesquisa etnográfica no Alto Rio Negro, a saber: uma comunidade no rio Uaupés, duas no rio Negro, uma no rio Içana e uma no rio Aiari. Observar as manivas compartilhadas por duas ou mais calhas de rio ajuda a refletir sobre as dinâmicas de relações entre as regiões que compõem o Alto Rio Negro. A segunda rede apresenta uma aproximação dos dados por cada comunidade/rio. Como podem ser percebidas as circulações de maniva entre as mulheres doadoras? Notamos que as mulheres que possuem mais variedades de manivas em suas roças são aquelas que estabelecem quantidade mais expressiva de relações sociais. Neste trabalho, o parentesco não é objeto de análise em primeiro plano, mas se inscreve como pano de fundo das relações que orientam as trocas de cultivares.