A pesca artesanal em Cabo Verde como obstáculo ao estratagema do progresso
uma reflexão etnográfica sobre a atualidade do “arcaico” e o atraso do “moderno” na gestão estatal das pescarias
Resumo
Este trabalho busca refletir sobre a escassa base de conhecimento antropológico, sociológico e histórico sobre a pesca artesanal em Cabo Verde como um fenômeno que conecta o passado e o presente das ilhas por meio de seu caráter estrutural. Sua manutenção como algo permanente, mesmo depois do processo de independência, relaciona-se tanto com o comportamento ideológico de suas elites governantes, como com a força e a violência ainda exercidas pelas antigas potências coloniais europeias como meio de garantir seus interesses imediatos na região. De nossa perspectiva, defendo que a apreensão etnográfica deste universo, partindo principalmente daquilo que os pescadores narram sobre seu ofício, pode vir a contribuir de maneira singular para a problematização do conflito socioambiental vivido pelos pescadores artesanais do arquipélago em função da sobreposição da pesca industrial nacional e estrangeira nas áreas tradicionais de captura e da consequente escassez estrutural do pescado que esta intrusão tem acarretado para as comunidades pesqueiras das ilhas. Apesar de amplamente presentes em todas as ilhas do arquipélago, em termos sociais e políticos tem sido possível identificar os atores da pesca situados em uma espécie de margem social que oblitera o caminho para que suas práticas e saberes sobre o mar sejam levados em conta nas formulações da gestão estatal do espaço marítimo que, nas últimas décadas, vem apostando fortemente em um processo de comoditização deste espaço, aprofundando a disputa pelo pescado a patamares dramáticos. No âmbito desta disputa, as comunidades pesqueiras têm sido capturadas nas teias de uma guerra classificatória que, acionando imagens arcaicas do passado colonial das ilhas, as tem associado a imagens de um primitivismo técnico e social que estão longe de corresponder ao que as pesquisas junto a estes coletivos são capazes de demonstrar.