Do fio à carne
Etnografia como registro do poder, autoinstituído, dos seres humanos sobre vida e morte de outros-que-humanos
Resumo
Este artigo pretende discutir, a partir de interações com o campo, o poder autoconcedido aos humanos, de legislarem sobre a vida e a morte de outros-que-humanos, infligindo penas capitais, mediante interesses alimentares e outros consumos. Para além dos preceitos humanos de ética e moral, seres vivos não humanos são compulsoriamente convidados a participar e contribuir com seus corpos em rituais macabros. Outrossim, o manuseio de artefatos de corte, cuja constituição e propósitos visam, que estes, cada um a seu tempo, agenciem a morte, a mutilação, o descarne, dividindo os corpos de não humanos em parte úteis e inúteis, conforme pressupostos humanos. O registro dessas interações entre seres humanos e outros-que-humanos faz parte de minha pesquisa sobre a produção de alimentos em ambiente urbano e periurbano. Em determinada fase da pesquisa participei, a convite de um interlocutor, de um ritual de morte e dilaceramento de um porco, para fins alimentares. Nesse contexto, a etnografia daquele confronto entre as facas e o corpo de outro-que-humano, impõe indagações sob uma perspectiva menos privilegiada de “homens enquanto espécie e humanidade enquanto condição”. Ainda, às questões religiosas e dogmáticas, indicativas de que ao porco só cabe a função de alimentar humanos. Outras lógicas para algumas aves e seus ovos, bovinos e seu leite. Por fim, a função comercial, pela qual classificamos outros-que-humanos conforme interesses: alimentos, de estimação e companhia para outros